Cedo rejeitado pela maior parte da família próxima, o José Carlos foi adotado quando ainda era muito novo: "(Eu) tinha uma madrinha... e tinha o meu avô... eles tinham o intuito de me vender a um casal rico. Só que eu tinha uns tios que gostavam muito de mim e evitaram, levaram-me para casa deles [...] como não tinham filhos, eu era o filho deles.".
Durante a sua infância e adolescência, teve experiências e alguns episódios que o marcaram profundamente: "Sofri sempre de bullying [...] Teria eu os meus 15 anos, eu... eu fui espancado [...] Eu cheguei a fazer uma participação à polícia, (mas) não havia provas... era a minha palavra contra 11... na altura, 11 (pessoas)... pontapearam-me e tudo [...] ainda hoje sofro com esse trauma [...] Muitas vezes, dá-me crises de ansiedade, pânico. Vou dormir, apago a luz, pânico. Isso tudo mexe com a gente, com a autoestima.". Além disso, desde cedo lidou com conflitos devido ao consumo abusivo de álcool entre os membros da sua família: "Dava-lhe para bater... eu tinha que fugir para ele não me bater [...] Quando morreu a minha tia, sim, ele parou de beber". Em resultado de tudo isto, sempre lidou com fases depressivas e episódios de ansiedade, o que nunca lhe permitiu viver de forma totalmente tranquila.
Concluiu a escolaridade até ao 9º ano e, mais tarde, decidiu investir na sua formação: "Fui fazer um curso pelo IEFP [...] de técnico de contabilidade, só que eu não percebia nada daquilo. Técnico de contabilidade é muito complicado... não concluí. Depois fiz um (curso) de informática, nem sei onde anda o diploma, não faço ideia. E depois fui fazendo assim uns trabalhos [...] mais na área de restauração". Nesta altura, a viver no distrito de Braga, foi conseguindo encontrar algumas oportunidades de emprego, nomeadamente como empregado de mesa e copeiro.
Quando os tios faleceram e ficou sozinho, mudou-se para a cidade do Porto: "Eu vim para o Porto... conheci uma rapariga cá [...] Apliquei-me mais como copeiro, como extra. Tive uma boa adaptação e gostei de trabalhar aqui". Em 2014, vai trabalhar para o Algarve: "ela [refere-se à companheira que tinha na altura] arranjou-me lá trabalho. Só estive lá 3 meses... julho, agosto, setembro... e outubro vim embora. [...] (Estava lá) sozinho e ela estava cá [no Porto]. Comecei a entrar na dependência do álcool [...] Pensei que o álcool me ia ajudar a combater a solidão. Mas não, foi pior.". A dificuldade em adaptar-se e em lidar com a solidão fizeram com que regressa-se ao Porto, mas esta nova mudança ficou marcada por diversas dificuldades em organizar-se e autossustentar-se: "começo a ir às carrinhas, porque não dava o dinheiro para tudo... tinha que ser para o quarto, mas tinha que arranjar meios de comer.".
Como não tinha trabalho e dinheiro para o quarto, dormir na rua foi a única alternativa que lhe restou: "Uma noite fiquei ali na Batalha [...] outro dia ia dormir lá no Orfeão e encontrei um amigo. Ele tinha um carro [...] ele ficava na parte da frente e eu ficava na parte de trás. Ele ligava o ar condicionado e nós ficávamos ali quentinhos [...] depois o carro foi apreendido, porque não era legalizado". Sobre este período de vida, o Zé Carlos lembra que "Dormir na rua não é fácil, não temos segurança. Temos que escolher um sítio onde não haja perigo [...] é desconforto... é saber que, mais dia menos dia, uma pessoa ia ser espancada ou podia... sei lá [...] quando eu estive na rua, eu reservei-me, também para que a sociedade não me visse... porque era mais seguro".
Ao reviver todo este percurso, o José Carlos explica "A minha família foi quem mais me julgou [...] hoje não tenho comunicação com nenhum por causa disso, descriminou-me completamente". "Mas no meio da sociedade, quem passou pela rua, é julgado [...] A diferença de estar numa instituição e de estar na rua... o julgamento é diferente.".
Algum tempo depois, com apoio da sua assistente social, conseguiu lugar no abrigo e apenas saiu de lá quando encontrou um quarto com as condições que necessitava, onde atualmente pode construir e organizar os seus planos de futuro: "Estou bem agora. Tenho um quartinho, tenho como cozinhar... está tudo bem [...] Eu queria ter um plano de futuro, mas... não sei. Eu queria escrever um livro [...] Eu adoro escrever". Hoje, procura essencialmente manter-se ativo e estar perto das pessoas que lhe são mais queridas: "O meu dia é acordar de manhã, tomar o pequeno almoço, arranjar-me todo, almoçar, dar uns passeios [...] Passeio por aí, pela cidade. Vou até à baixa. Às vezes vou até à Associação Abraço, também tenho lá grandes amizades. À noite janto, ali na Ordem do Terço, e depois vou para casa e vejo televisão... e quando chegar a hora de sono, vou dormir.".
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